INTRODUÇÃO
Uma vez caracterizado um nódulo em glândula salivar, têm-se que tomar a decisão de se realizar uma cirurgia de exérese do mesmo ou fazer acompanhamento clínico. Um dos critérios mais importantes para essa decisão é a análise das células que compõem o nódulo. Nesse contexto, a biópsia / punção aspirativa por agulha fina (PAAF) exerce um papel fundamental na investigação diagnóstica. Trata-se de um procedimento minimamente invasivo, seguro e de baixo custo. A especificidade da PAAF de glândula salivar para diferenciação entre lesões não-neoplásicas vs. neoplásicas e de neoplasias benignas vs. malignas está entre 97-98%.
Apesar da PAAF de glândula salivar ser um teste eficiente, de primeira linha na investigação de nódulos de glândulas salivares, até o ano de 2018 não havia uma padronização para os laudos citopatológicos. Em 2015 foram iniciados os trabalhos para elaboração de um sistema padronizado, internacional, centrado no paciente, de laudos citopatológicos de glândulas salivares.
Os primeiros passos foram dados em setembro de 2015, durante o Congresso Europeu de Citologia, quando citopatologistas, patologistas cirúrgicos, patologistas moleculares e cirurgiões de cabeça e pescoço de 15 países se reuniram na cidade de Milão e propuseram o sistema que ficou conhecido como Sistema Milão (Milan System for Reporting Salivary Gland Cytopathology – MSRSGC). A publicação final do sistema aconteceu com a edição de um livro atlas [1].
Uma das características mais marcantes do MSRSGC é ser centrado no paciente, ou seja, na conduta a ser tomada diante de um nódulo em glândula salivar. Dessa maneira o sistema foi elaborado com o intuito de responder a essas perguntas básicas, porém cruciais:
- A amostra é representativa de glândula salivar? Ou é representativa de outras estruturas cervicais (linfonodo, tecidos moles, etc.)?
- A lesão é neoplásica? Se sim, é benigna, maligna ou não é possível afirmar?
- Se maligna, a lesão é de baixo grau ou alto grau?
- Se alto grau, a lesão é primária da glândula salivar ou pode ser considerada a hipótese de lesão metastática?
Se o laudo citopatológico responder assertivamente a essas questões, ele vai ajudar muito na decisão de conduta do paciente. Para atingir esse objetivo, o MSRSGC propos a divisão em 6 categorias diagnósticas, cada uma com um risco esperado de malignidade (calculado a partir dos dados disponíveis da literatura) e proposições de conduta.
A PAAF de glândulas salivares é muito eficiente em diferenciar lesões neoplasicas vs. não neoplásicas. Em casos de neoplasias, PAAF pode diagnosticar os tumores benignos mais frequentes. Na maioria dos casos pode também diferenciar entre carcinomas de baixo grau e alto grau. Como, de regra geral, as lesões neoplásicas da glandula salivar são manejadas cirurgicamente, enquanto as lesões não neoplásicas podem ser acompanhadas de maneria conservadora, sem cirurgia, ou seja, MSRSGC possue uma aplicabilidade clínica inestimável. Não é necessário fazer um diagnóstico do tipo histológico no momento da PAAF, a classificação dos achados em categorias diagnósticas permite fornecer informações valiosas para a decisão clínica.
CATEGORIAS DIAGNÓSTICAS
NÃO DIAGNÓSTICO (CATEGORIA I)
Definição: Uma PAAF classificada como não diagnóstica é aquela que não fornece material suficiente (qualitativamente ou quantitativamente) para uma interpretação diagnóstica.
Para se garantir baixas taxas de falso-negativos, é necessário que as PAAF de glândulas salivares contenham material adequado para análise. Criterios específicos (por exemplo número mínimo de células) não foi definido pela literatura, mas alguns autores recomendam um número mínimo de 60 células. É sempre importante haver uma boa correlação clínica nesses casos.
Os cenários mais comumente classificados como NÃO DIAGNÓSTICO (CATEGORIA I) são:
a) Presença de raras células no esfregaços (menos de 60) ou ausencia de células.
b) Esfregaços com artefatos pré-analíticos (por exemplo: esfregaços espessos, dessecados ou com problemas de coloração). Esses artefatos impedem uma avaliação do componente celular.
c) Componentes não neoplásicos (componentes de glandula salivar normal) no contexto de uma massa clinicamente e/ou radiologicamente detectável. A presença de elementos normais não explicariam a presença de um tumor e portanto seria classificado como não diagnóstico.
d) Amostra representada exclusivamente por conteúdo cístico não mucinoso (sem elementos epiteliais para análise).
São previstas algumas excessões para não classificar uma PAAF como NÃO DIAGNÓSTICO (CATEGORIA I):
i) Presença de atipias citológicas significantes. Esfregaços como o mínimo de atipias citológicas devem ser classificadas como ATIPIA DE SIGNIFICADO INDETERMINADO (AUS).
ii) Conteúdo de fluido mucinoso sem representação epitelial deve ser interpretada como ATIPIA DE SIGNIFICADO INDETERMINADO (AUS) devido ao risco de representar uma amostragem sub-ótima de um carcinoma muco-epidermóide.
iii) A presença de abundante componente inflamatório sem células epiteliais deve ser interpretado como adequado.
iv) Na ausência de células neoplásicas, se houver a presença de matriz, a PAAF não deve ser interpretada em outra categoria que não a I, que melhor se encaixe ao quadro citopatológico.
Manejo Clínico: Diante de um quado não-diagnóstico, o MSRSGC recomenda a repetição do procedimento. Em muitos casos, o que levou à classificação como não diagnóstico foram artefatos de punção, que poderão ser evitados na nova PAAF.
NÃO NEOPLÁSICO (CATEGORIA II)
Definição: A categoria NÃO NEOPLÁSICO é usada para espécimes que apresentam alterações não neoplásicas benignas, incluindo respostas inflamatórias reativas agudas ou crônicas, alterações estruturais e infecção. Essa categoria deverá ser interpretada em conjunto com informações clínicas e radiológicas.
O risco de malignidade (ROM) para essa categoria é de 10%. Por isso, é necessária correlação clinico-radiológica para se evitar erros de falso-negativos.
São quadros clínico-patológicos que podem ser enquadrados na categoria NÃO NEOPLÁSICO:
- Sialolitíase
- Sialoadenite Aguda
- Sialoadenite Crônica, incluindo doença relacionada a IgG4
- Sialoadenite Granulomatosa
- Linfonodo com Hiperplasia reacional
- Sialoadenite Linfoepitelial / Lesão Linfoepitelial Benigna
- Sialoadenose
- Oncocitose
Manejo Clínico: Lesões dentro desta categoria devem ser seguidas clinicamente, com repetição de exame físico e exames de imagem. Quaisquer mudanças nas características clínicas ou radiológicas devem sugerir uma nova PAAF, dado o alto risco de erro de amostragem nessa categoria.
ATIPIAS DE SIGNIFICADO INDETERMINADO – AUS (CATEGORIA III)
Definição: A categoria AUS refere-se a PAAFs de glândulas salivares que não possuem critérios citomorfológicos qualitativos ou quantitativos para serem classificados com confiança como não neoplásico ou neoplásico. Além disso, o PAAF exibe características citomorfológicas que excluem a classificação como NÃO-DIAGNÓSTICO. A maioria das amostras serão representativas de atipias reativas ou amostragem sub-óptima de neoplasias.
Ao incluir a categoria AUS (III), o sistema reduz o número de falso-negativos da categoria NÃO NEOPLÁSICO, reduzindo também o número de diagnósticos falso-positivos da catergoria NEOPLÁSICO. Essa categoria é heterogenea por natureza. Os produtos de PAAF serão frequentemente associados a problemas pré-analíticos ou a características intrísecas da lesão (cistos, fobrose, necrose) que resultem em número limitado de células bem preservadas. Tmbém podem estar incluídos nessa categoria as amostras que apresentem aspectos morfológicos que se sobrepõem entre processos neoplásicos e não neoplásicos.
Alguns cenários que o diagnóstico de AUS pode ser usado:
a) Atipia reativa/reparativa indefinido para neoplasia.
b) Metaplasia escamosa, oncocítica ou outras alterações metaplasicas quando forem indefinidas para neoplasia.
c) Espécimes com baixa celularidade e sugestivo, mas não diagnóstico para neoplasia.
d) Espécimes com artefatos pré-analíticos impedindo uma distinção entre processos neoplásicos e não neoplásicos.
e) Lesão cística mucinosa com componente epitelial escasso / raro
f) Linfonodos intraparenquimatosos ou lesões linfóides que sejam indefinidas para doenças linfoproliferativas.
Manejo Clínico: A categoria AUS deve ser avaliada em contexto clínico-radiológico. A depender do risco, pode-se optar por repetir a PAAF, realizar uma biópsia por agulha grossa, biópsia cirúrgica ou mesmo excisão cirúrgica. Para lesões císticas, aspiração de toda massa residual, usando-se USG pode ajudar na elucidação diagnóstica. Em aspirados com população linfóide atípica, o uso de técnicas complementares como citometria de fluxo, imunohistoquímica ou mesmo obtenção de amostra tecidual (biópsia) podem ser usados para afastar a hipótese de doença linfoproliferativa.
NEOPLASIA BENIGNA (CATEGORIA IVa)
Definição: Esse diagnóstico é feito quando a PAAF apresenta características citomorfológicas de neoplasias epiteliais ou mesenquimais benignas de glândula salivar.
A PAAF de glândula salivar pode diagnosticar a maior parte dos tumores benignos com alta celularidade (>98%). No entanto, a PAAF é menos específica na definição de um diagnóstico específico para outras neoplasias.
As neoplasias benignas abaixo listadas podem ser diagnosticadas com critérios citomorfológicos:
- Adenoma Pleomórfico
- Tumor de Warthin
- Oncocitoma
- Lipoma
- Schwannoma
- Lymphangioma
- Hemangioma
NEOPLASIA DE GLÂNDULA SALIVAR DE POTENCIAL MALIGNO INCERTO / SUMP (CATEGORIA IVb)
Definição: Esse diagnóstico é reservado para casos em que as características citomorfológicas são diagnósticas de um processo neoplásico, mas não é possível diferenciar entre uma neoplasia benigna vs. maligna. Em outras palavras, não se pode excluir a possibilidade de uma neoplasia maligna . A maioria das neoplasias malignas classificadas nessa categoria serão carcinomas de baixo grau.
São entidades típicas dessa categoria:
- Tumores Basalóides Celulares
- Neoplasias Oncocíticas / Oncocitóides Celulares.
- Neoplasias de Células Claras Celulares
SUSPEITO PARA MALIGNIDADE (CATEGORIA V)
Definição: Essa categoria é usada quando alguns, mas não todos os critérios para um diagnóstico de malignidade está presente. O quadro citopatológico geral é sugestivo, mas não conclusivo para malignidade.
As categorias III, IVa e V representam categorias indeterminadas no MSRSGC. Elas são usadas para se estratificar o risco de malignidade e para informar o médico assistente que a amostra não pode ser classificada em uma categoria diagnóstica definitiva para malignidade ou benignidade. O objetivo da categoria V é preservar o alto valor preditivo positivo da categoria VI (Maligno), ao mesmo tempo em que oferece uma opção com alta taxa de malignidade para casos em que nem todos os critérios de malignidade foram observados. Uma quantidade grande desses casos representarão uma amostragem sub-óptima de neoplasias malignas de alto grau.
São quadros citomorfológicos previstos nessa categoria:
- Presença de células inequivocadamente atípicas em um esfregaço com problemas pré-analíticos (má fixação, obscurecido por sangue ou inflamação).
- Presença de características citológicas limitadas de uma lesão maligna em uma amostra com baixa celularidade. Carcinomas de baixo grau como carcinoma adenóide-cístico, carcinoma muco-epidermóide ou carcinoma de células acinares, são os mais frequentemente representados nesse cenário.
- Presença de células atípicas ou suspeitas em um quadro citopatológico geral com predominância de características benignas de glândulas salivares.
- Amostra escassa com características atípicas, sugestivas de neoplasia neuro-endócrina.
- Presença de elementos linfocíticos com atipias suspeitas para linfoma.
MALIGNO (CATEGORIA VI)
Definição: Essa categoria deve ser usada quando os aspirados de glândula salivar apresentarem critérios citomorfológicos diagnósticos para neoplasia maligna.
São considerados carcinoma de baixo grau que podem ser enquadrados nessa categoria:
- Carcinoma de Células Acinares.
- Carcinoma Secretório.
- Carcinoma Epitelial-Mioepitelial.
São considerados carcinoma de alto grau que podem ser enquadrados nessa categoria:
- Carcinoma de Ductos Salivares.
- Carcinoma Linfoepitelial.
- Carcinoma Neuroendócrino de Pequenas Células
São considerados carcinoma de graus múltiplos ou intermediário que podem ser enquadrados nessa categoria:
- Carcinoma Muco-Epidermóide.
- Carcinoma Adenóide-Cístico
- Carcinoma Mioepitelial
- Carcinoma ex-Adenoma Pleomórfico
- Tumores Hematolinfóides
- Neoplasias Metastáticas
- Neoplasias Mesenquimais Malignas (sarcomas)
ALGUMAS ENTIDADES DIGNAS DE NOTA
CARCINOMA MUCOEPIDERMÓIDE: O carcinoma mucoepidermóide (CME) é um grande simulador em PAAFs de glândula salivar, trazendo dificuldades diagnósticas devido a critérios citomorfológicos pouco definidos a depender da amostragem. Além disso, ele é a doença maligna de glândulas salivares mais comum em crianças e adultos. O CME é um tumor que reconhecidamente possui 3 graus de diferenciação. Sua forma bem diferenciada pode resultar em achados citopatológicos muito brandos cujo diagnóstico diferencial inclui inclusive doenças não neoplásicas. O diagnóstico diferencial de CME sempre é lembrado quado estão presentes células mucinosas, ou mesmo só mucina, mesmo sem demonstração de atipias. Esse cenário pode ser representados em vários exemplos. Não é incomum que o aspirado do CME contenha apenas muco (frequentemente o CME é cístico) e ser classificado como Atipias de Significado Indeterminado, devido ao grau de incerteza diagnóstica. Alguns casos de sialolitíase podem acarretar metaplasia do epitélio ductal que juntamente com alterações epiteliais reativas podem fazer o citopatologista suspeitar de um CME de baixo grau.
METAPLASIAS EM NEOPLASIAS BENIGNAS E LESÕES NÃO NEOPLÁSICAS: Algumas entidades não neoplásicas e benignas podem sofrer metaplasia resultando em aspirados de difícil interpretação. As metaplasias podem ser do tipo escamoso, oncocítico, mucinoso e sebáceo e sua presença em um esfregaço pode resultar na consideração de uma variedade de diagnósticos diferenciais, especialmente se a amostragem não for boa. Não é incomum que um Tumor de Warthin sofra infarto e seu epitélio responda a essa agressão com metaplasia do epitélio. O resultado desse processo pode resultar em uma PAAF com presença de células metaplásicas escamosas/escamóides ou mesmo mucinosas atípicas.
NEOPLASIAS BASALÓIDES: Constituem um grupo heterogenio de neoplasias epiteliais e bifásicas (epitelial / mioepitelial) caracterizadas pela proeminencia de representação de células basalóides (ie. células monótonas, sobrepostas, com pouco citoplasma e núcleos redondos). Esse espectro inclui neoplasias benignas (ex. adenoma pleomórfico e adenoma de células basais) e neoplasias malignas (ex. carcinoma de células basasis e carcinoma adenóide-cístico). Quando resultante em uma amostra adequada, o estudo citopatológico dos produtos e PAAF dessas lesões serão mais frequentemente classificadas como SUMP (Categoria IVb). Isso ocorre porquê esse grupo de lesões apresenta elementos morfológicos comuns entre neoplasias benignas e malignas. A taxa de malignidade (ROM) para a categoria SUMP / IVb gira em torno de (28-40%).
REFERÊNCIAS
[1] Faquin WC, Rossi ED (ed). The Milan System for Reporting Salivary Gland Cytopathology. Springer International Publishing AG 2018.
Ótimo artigo para consulta rápida e com referência.