Em 2007, o “National Cancer Institute” dos Estados Unidos promoveu uma conferência multidisciplinar a fim de se discutir o “estado da arte” das punções aspirativas por agulha fina (PAAF) de tireóide. Até então, existiam várias classificações usadas por diferentes países e associações, mas nenhuma reconhecida internacionalmente.
O momento em que essa reunião aconteceu foi grande importância por alguns aspectos: 1) Havia um crescente número de trabalhos evidenciando inconsistências de laudos citopatológicos e histopatológicos; 2) Estudos clinico-patológicos demonstravam ser possível classificar as neoplasias de tireóide como de baixo e alto risco; 3) Inicio de aplicações de técnicas moleculares na investigação dos nódulos tireoidianos; 4) O crescente número de nomenclaturas propostas sem que se tivesse uma internacionalmente aceita.
Durante o encontro, reconheceu-se a necessidade de padronização internacional dos laudos, sendo estabelecido que o citopatologista deveria elaborar um laudo centrado no paciente, contendo conclusões sucintas e claras, não permitindo confusões interpretativas.
O Resultado dessa reunião foi a publicação do Sistema Bethesda para Laudos Citopatológicos de Tireóide (The Bethesda System for Reporting Thyroid Cytopathology – TBSRTC). Este sistema prevê a classificação das amostras em 6 classes ou categorias, a saber:
I) AMOSTRA NÃO DIAGNÓSTICA
II) BENIGNO
III) ATIPIAS DE SIGNIFICADO INDETERMINADO / LESÃO FOLICULAR DE SIGNIFICADO INDETERMINADO
IV) SUSPEITO DE NEOPLASIA FOLICULAR
V) SUSPEITO DE MALIGNIDADE
VI) MALIGNO
Para cada categoria, definiu-se uma taxa/risco de malignidade (Rate of Malignancy – ROM) além de descrição dos critérios citopatológicos.
Variações Aceitas: (a) Insatisfatório; (b) Lesão folicular de significado indeterminado; (c) Neoplasia folicular
A seguir, faremos uma breve explicação sobre cada categoria:
CATEGORIA I – AMOSTRA NÃO DIAGNÓSTICA: Incluem-se nesta categoria os esfregaços que não satisfaçam os critérios mínimos de representatividade do parênquima tireoidiano ou que apresentem artefatos pré-analíticos (i.e. dessecamento, sobreposição, etc.) que impeçam uma avaliação citopatológica. A identificação de amostras inadequadas ajuda a prevenir aumentos nas taxas de falso negativos.
São exemplos de cenários que se encaixam nessa categoria:
a) Menos de 6 grupos de células bem preservadas
b) Células foliculares mal fixadas, com artefatos, obscurecidas
c) Amostras constituídas exclusivamente por conteúdo cístico, com menos de 6 grupos de células foliculares.
Células espumosas e hemossiderófagos. Caso sejam os únicos elementos celulares em uma amostra esta é considerada insatisfatória.
CATEGORIA II – BENIGNO: Esfregaços adequados para análise, sem elementos morfológicos de malignidade e sem atipias citopatológicas devem ser enquadrados nesta categoria. Uma vez que a maioria dos nódulos tireoidianos é benigna, esta será a classe mais frequente, caso sejam obtidas amostras satisfatórias. Esta categoria abrange um grupo de lesões benignas com características citológicas semelhantes. Entre essas lesões incluem-se:
1) Bócio nodular
2) Nódulos hiperplásicos / adenomatóides
3) Nódulos colóides
4) Nódulos em doença de Graves
5) Adenomas macrofoliculares
A distinção entre essas entidades histopatológicas não é possível em esfregaços citopatológicos, mas isso tem pouca repercussão clínica pois todos são benignos e são conduzidos de maneira conservadora.
Entidades inflamatórias do parênquima tireoidiano como a doença de Graves e tireoidite de Hashimoto também são classificados nesta categoria.
Colóide abundante desprovido de células foliculares. Este caso é uma exceção à regra de adequabilidade de deverá ser considerado benigno, necessitando de correlação clínica e com exames de imagem.
CATEGORIA III – ATIPIAS DE SIGNIFICADO INDETERMINADO/ LESÃO FOLICULAR DE SIGNIFICADO INDETERMINADO (AUS/FLUS): O termo indeterminado traduz uma incerteza se a lesão é maligna ou benigna e é resultado da limitação intrínseca do método citopatológico. Antes da publicação dessa nomenclatura, havia diferentes formas de se soltar um laudo indeterminado, sendo fonte frequente de confusão entre patologistas e clínicos. É importante separar os casos atípicos, a depender do risco de malignidade. A categoria III (AUS/FLUS) apresenta o menor risco de malignidade entre os casos atípicos. De uma maneira geral, essa categoria deverá ser usada em esfregaços que contenham células (foliculares, linfoides ou outras) com atipias citológica e/ou arquitetural que não preenchem os critérios para serem classificadas como suspeito para neoplasia folicular (Categoria IV – FN/SFN), suspeito para malignidade (Categoria V) ou maligno (Categoria VI). A essa regra geral, o Sitema Bethesda reconhece 8 situações em que a Categoria III deverá ser usada:
1) Presença de uma população de microfolículos que não preenchem os critérios de Suspeito de neoplasia folicular (Categoria IV).
2) Predominância de células de Hürtle em um aspirado com baixa celularidade e escasso colóide.
3) A interpretação das atipias citológicas encontra-se prejudicada por artefatos pré-analíticos.
4) Amostra composta quase exclusivamente por células de Hürtle, mas o contexto clínico sugere um nódulo benigno (tireoidite de Hashimoto e bócio multinodular).
5) Amostra com predominância de células foliculares de aspecto benigno, mas contendo áreas focais sugestivas de carcinoma papilar.
6) Amostra com predominância de células foliculares de aspecto benigno, mas contendo células de revestimento cístico que parecem atípicas devido a presença de fendas, nucléolos e núcleos aumentados.
7) População pequena de células foliculares atípicas encontradas em pacientes que fizeram uso de iodo radioativo ou outros fármacos e casos relacionados a alterações reparativas como degeneração cística e hemorragia.
8) Infiltrado linfoide atípico cujo grau de atipia é insuficiente para enquadrar na categoria V – suspeito de malignidade.
Esfregaço predominantemente benigno com áreas focais contendo células de núcleos grandes, claros com raras fendas nucleares. Categoria III – Atipias de significado indeterminado.
CATEGORIA IV – SUSPEITO DE NEOPLASIA FOLICULAR (FN/SFN): Nessa categoria incluem-se esfregaços hipercelulares com células foliculares monomórficas dispostas em um padrão arquitetural alterado caracterizado por placas sinciciais, e formação de microfolículos. Casos com núcleos suspeitos de carcinoma papilar são excluídos dessa categoria, sendo melhor caracterizados como Categoria V. Quando utilizado de maneira correta, essa categoria apresenta uma chance de identificar lesões neoplásicas na ordem de 65-85% e um risco de malignidade de 15-30%. Portanto uma conduta cirúrgica limitada (lobectomia) seria a mais indicada.
Agrupamento sincicial de células foliculares com núcleos sobrepostos redondos. Categoria IV.
Esfregaço hipercelular com predominância de microfolículos e placas sinciciais. Categoria IV.
Quando o quadro de suspeição de lesão folicular envolve células com diferenciação oxifílica (células de Hürtle), utiliza-se a mesma Categoria IV, adicionando informação sobre a natureza da células, por exemplo: Suspeito de neoplasia folicular, variante de células oxifílicas.
Caso encaminhado para revisão com diagnóstico prévio de carcinoma medular de tireóide. Observamos células oxifílicas formando agrupamentos sinciciais e microfolículos (figuras A,B e C), este caso foi classificado como Categoria IV, Suspeito de neoplasia folicular, variante de células oxifílicas. O estudo histopatológico (Figura D) revelou um adenoma de células oxifílicas.
CATEGORIA V – SUSPEITO DE MALIGNIDADE: Uma amostra é considerada suspeita de malignidade quando algumas característica de malignidade estão presentes, mas os achados não são suficientes para um diagnóstico conclusivo. O risco de malignidade para esta categoria é de 60-75%, sendo indicado portanto uma terapia cirúrgica. Amostras suspeitas de neoplasia folicular estão excluídas dessa classe devendo ser classificadas como Categoria IV. São previstos para serem classificados nessa categoria os esfregaços suspeitos de serem carcinoma papilar, carcinoma medular ou linfoma mas aceita-se a sua aplicação para suspeição de qualquer outra malignidade.
Placa sincicial de células foliculares com núcleos irregulares com eventuais fendas. Categoria V – suspeito de malignidade (carcinoma papilar).
CATEGORIA VI – MALIGNO: Quando todos os critérios para malignidade estão presentes em um esfregaço, este deve ser classificado como Categoria VI Maligno. Essa categoria representa 4-8% de todas as punções, sendo a maioria carcinoma papilar de tireóide. O diagnóstico citopatológico de malignidade tem elevado valor preditivo positivo. Quando um diagnóstico definitivo de Carcinoma Papilar é feito em esfregaços citológicos, há uma correlação com Carcinoma Papilar na peça cirúrgica em 96-100% dos casos.
Esfregaço hipercelular composto por células plasmocitóides com cromatina salpicada e frequentes pseudoinclusões nucleares (Figura B). Substância amorfa ao fundo, sugestivo de amiloide (Figura A). Esse esfregaço foi classificado como Categoria VI – Maligno, compatível com Carcinoma Medular de Tireóide. O estudo imunocitoquímico foi positivo para calcitonina (Figura C), e o paciente apresentou níveis séricos elevados de calcitonina. A peça cirúrgica (Figuras D e E) demonstrou a presença de Carcinoma Medular de Tireóide.
PRIMEIRA VERSÃO (2007). A proposta do TBSRTC, não apenas trouxe uma padronização para os laudos, mas também foi importante nos seguintes aspectos: 1) Estabeleceu de forma clara os casos indeterminados, nos quais as alterações morfológicas não podiam ser seguramente classificadas como maligno vs. benigno; 2) Escalonou os riscos de malignidade para essas amostras indefinidas (III, IV e V). A padronização dos laudos proposta por essa publicação foi um avanço que facilitou a comunicação entre os citopatologistas e os médicos assistentes, melhorando o serviço prestado ao maior interessado nesse processo, o paciente.
A NECESSIDADE DE REVISÃO (2007-2017). A aplicação do TBSRTC ocorreu de maneira global nos anos subsequentes à sua publicação. A aceitação do sistema no meio médico e científico modificou tanto a maneira como os pacientes eram diagnosticados como também a linguagem dos trabalhos científicos. A quantidade de literatura sobre o tema cresceu, e um fato notório foi que os índices de ROM (taxa de malignidade) quando aplicados na rotina diagnóstica, não eram exatamente o mesmo daquele inicialmente proposto. Em 2015 a associação americana de tireóide (ATA) publicou suas diretrizes endossando o uso do TBSRTC.
A ROM calculada na primeira edição do TBSRTC era baseada na revisão de literatura e composta exclusivamente por casos submetidos à excisão cirúrgica. A maioria dos relatos selecionados para se calcular a ROM eram de centros terciários o que poderia superestimar essa taxa.
Além disso, em 2016, alguns tumores que antes eram classificados histologicamente como malignos, foram reclassificados como benignos. O NIFTP (Noninvasive Follicular Thyroid Neoplasm with Papillary-Like Nuclear Features / Neoplasia tireoidiana folicular não invasiva com características nucleares do tipo papilar) que anteriormente era classificado como Carcinoma Papilar de tireóide, variante encapsulada, passou a ser reconhecido em 2016 como uma entidade benigna ou de baixo potencial de malignidade[3]. Uma análise retrospectiva mostrou que os casos histologicamente classificad0s como NIFTP foram diagnosticados citologicamente como indefinidos (categorias III, IV e V). Notou-se também uma redução do ROM para essas categorias, ao se reclassificar essas entidades como benignas.
Considerando todos esses aspectos, foi proposta uma atualização do sistema, a segunda edição do TBSRTC publicada em 2016[4]. A ROM foi atualizada assim como alguns aspectos do manejo clínico, que agora inclui os testes moleculares em vários cenários.
Quer saber mais sobre testes moleculares na investigação de nódulos tireoidianos? Tem um POST dedicado a esse assunto, https://laminalab.com.br/testes-moleculares-na-investigacao-de-nodulos-tireoidianos/
Dr. Marcos Segura
Médico Patologista e Citopatologista com título de especialista nestas duas áreas. Possui mestrado em ciências médicas pela Faculdade de Medicina da UnB
REFERÊNCIAS
(1) Ali S, Cibas ES. The Bethesda System for Reporting Thyroid Cytopathology. Definitions, Criteria and Explanatory Notes. 1 ed. New York, NY: Springer; 2010.
(2) Baloch ZW, Cibas ES, Clark DP, Layfield LJ, Ljung BM, Pitman MB, et al. The National Cancer Institute Thyroid fine needle aspiration state of the science conference: a summation. Cytojournal 2008 Apr 7;5:6.:6.
(3) Nikiforov YE et al. Nomenclature Revision for Encapsulated Follicular Variant of Papillary Thyroid Carcinoma: A Paradigm Shift to Reduce Overtreatment of Indolent Tumors. JAMA Oncol. 2016 1;2(8):1023-9.
(4) Pusztaszeri M et al. The Bethesda System for Reporting Thyroid Cytopathology: Proposed Modifications and Updates for the Second Edition from an International Panel. Acta Cytol. 2016;60(5):399-405.